Vera Spinola
Viajando pel’Os Lusíadas
Vera Spínola
Resumo
O objeto do artigo é o poema Os Lusíadas, de autoria do português Luís de Camões (1524-1580). O objetivo central é se compará-lo a poemas contemporâneos de autoria do também português Fernando Pessoa (1888-1935), e da brasileira Adélia de Castro Fonseca (Salvador, BA,1827- Rio de Janeiro,1920). Identificaram-se poemas de autoria desses autores que tivessem semelhanças com a obra de Camões. Propõe-se uma jornada pelo Os Lusíadas, considerado uma narrativa épica da viagem de Vasco da Gama, comparando-o ao poema Mar Português, de Fernando Pessoa. Discute-se o conceito de sebastianismo à luz da obra dos dois poetas, relatando-se fatos da história de Portugal. Mostram-se semelhanças da trágica história de amor da espanhola Inês de Castro (1325-1355) e D. Pedro I (1320-1367), rei de Portugal, com a tragédia de Julia Fetal (Salvador, BA, 1827-1847), assassinada por ciúme pelo noivo Estanislau da Silva Lisboa, no famoso crime da bala de ouro. No túmulo de Julia, na Igreja da Graça em Salvador, Bahia, encontra-se um soneto de autoria de Adélia de Castro Fonseca que tem semelhanças ao trecho em que Camões se refere a Inês de Castro. Discute-se a contemporaneidade da obra clássica, presente em canções de Chico Buarque e Gilberto Gil. Os autores utilizados como referência estão elencados da bibliografia, com destaque para Fernando Gil e Helder Macedo, na obra Viagens do Olhar.
Viajando pel’Os Lusíadas
Vera Spínola
1. Ponto de Partida
Saio da aula de literatura com a cabeça cheia de novidades. No caminho de casa começo a planejar uma viagem com Os Lusíadas. Fico atenta para desviar dos dejetos de cães sem tropeçar nos buracos da calçada. E ainda tapar o nariz ao passar perto do lixo descuidadamente jogado nas calçadas. Toda viagem tem pelo menos um ponto de partida, uma direção sem necessariamente um roteiro rígido ou ponto de chegada definido. Tal como em alguns exemplos da navegação portuguesa, o porto destino da minha viagem está vago. Os portugueses tinham uma bússola, mas a direção podia mudar de acordo com ventos ou outras circunstâncias.
Pretendo fazer algumas escalas. Revisitar o texto de José Guilherme Merquior acerca do humanismo, ler as reflexões de Helder Macedo com o olhar sobre Camões. Dar algumas paradas em Fernando Pessoa ou Chico Buarque, Gilberto Gil e talvez até pegue uma carona no navio Adamastor que, segundo Noel Rosa, levou um de seus personagens a Portugal para se casar com uma cachopa. Ainda não sei a ordem das minhas escalas. Será um eterno vai e vem até encontrar pelo menos o ponto de partida.
Ao chegar no porto seguro de minha casa corri para o computador na tentativa de não perder os fragmentos de pensamento, naquele momento precioso. Assim, comecei o trabalho, fazendo um diário de bordo, navegando com as primeiras ideias.
Ao ler a obra Meu Querido Canibal, do autor baiano Antonio Torres, tema de outro trabalho de curso, deparo-me com uma passagem em que o personagem diz “Aterro do Flamengo. Pausa para a releitura de um poema d’além-mar, cujo autor dispensa apresentações” (TORRES, 2000, p.125). Como não sou grande leitora de poesia percebi no texto semelhanças com Os Lusíadas e cogitei de o autor ser o próprio Camões. Ao verificar que se tratava de Fernando Pessoa, vislumbrei a possibilidade de fazer dali o meu porto de embarque, ao lado das três primeiras estrofes dos Lusíadas (Quadro 1).
2. A Obra no Contexto Histórico
Camões escreveu Os Lusíadas em 1572, em plena época da colonização portuguesa por diferentes regiões do mundo, tanto na América do Sul quanto na África e no Oriente em direção à Índia. Por onde passavam, os portugueses iam estabelecendo entrepostos comerciais, colônias de povoamento, e também pilhando, expropriando e desconstruindo as culturas locais. Alcançaram terras bem distantes, a exemplo da colônia de Macau, na China.
O elemento econômico seria o fator determinante para o empreendimento colonial. Nos séculos XV e XVI, a Europa passava por um processo lento de transformação de uma economia feudal para a formação dos estados nacionais sob o poder absoluto dos reis. O estado político não se sustenta, contudo, sem o estado econômico. A conquista de novos territórios, com riquezas naturais, oferecia uma oportunidade de expansão aos estados nacionais e de acumulação de riqueza, que viria dar sustentação ao estado político. Vale lembrar que Portugal foi a primeira nação constituída da Europa, localizado no extremo oeste do mundo conhecido dos europeus.
O homem não é movido apenas pelo fator econômico. É movido também pelo sonho, pela busca do paraíso perdido. A partir da Europa, imaginava-se que o paraíso estivesse primeiramente no Oceano Índico (BERND, 2003). Na medida em que se descobriam novos territórios e em que os mitos eram desconstruídos, acreditava-se que o Éden estaria mais distante. Os novos mundos eram fantasiados como terra prometida. Por sua vez, seus habitantes seriam almas pagãs, na visão cristã. O empreendimento colonial ganhava mais uma justificativa. A conversão de ovelhas para o rebanho cristão. Os portugueses se sentiam predestinados por Deus numa missão colonizadora de caráter religioso. A Companhia de Jesus, por exemplo, fundada no bojo da contrarreforma católica em 1534, foi um dos instrumentos com missão de converter os povos autóctones ao catolicismo.
Camões compôs um poema épico-lírico através dos mares sob a influência do Renascimento europeu. O fio condutor de Os Lusíadas é a pioneira viagem de Vasco da Gama à Índia. O tema mais amplo, a história de Portugal, cujo apogeu é justamente essa expedição. O plano mais profundo do discurso, na análise de Gil e Macedo (1998) é a iniciação através do amor, a viagem para o conhecimento.
De acordo com Merquior (1972) numa abordagem filológica, renascimento significa revivência, mediante o estudo dos clássicos, da superioridade intelectual dos antigos, da civilização greco-romana sobre a posterior barbárie. À luz do pensamento de Petrarca, a barbárie teria transcorrido entre a oficialização do cristianismo e os primeiros momentos de redescoberta da antiguidade (renascimento), ou seja, no período identificado pela história oficial como Medieval.
Por sua vez, numa abordagem filosófica, identifica-se a renascença como um movimento de secularização e de autoafirmação do homem, entendendo-se secularização como um processo pelo qual a religião deixa de ser o aspecto cultural agregador. Ao se remeter a Jacob Burckhardt, Merquior (1972) observa que a paixão pela Antiguidade foi mais um meio de expressão do que a essência da renascença. No nosso entendimento, um referencial teórico.
Gil & Macedo (1998) comentam que as viagens marítimas iniciadas pelos portugueses trouxeram para a cultura europeia renascentista, um fato novo, sem que o pensamento filosófico e a imaginação poética tivessem ainda construído a linguagem necessária para lhes dar significação. Consideram Camões o poeta do novo com a linguagem do antigo. Poeta mais da dúvida que da certeza. Perguntamo-nos se existe poeta da certeza.
Como mostra Bueno (1993), seguindo uma tradição clássica, na abertura de Os Lusíadas, tem-se a proposição, da 1ª à 3ª estrofe (Quadro 1), de cantar as armas e os barões gloriosos da história portuguesa. Da 4ª e 5ª estrofes, a invocação às ninfas do rio Tejo português para que lhe concedam a retórica de poeta (Quadro 1). Da 6ª à 18ª, a dedicatória ao rei D. Sebastião (1554-1578). Nele era depositada a fé para continuação das conquistas dos portugueses e a fé católica.
A ação da navegação em si começa na estrofe 19 enquanto ocorre um concílio dos deuses. Oriundos da mitologia grega, eles são referenciados com letra maiúscula tal como o Deus cristão.
Vênus apoia os lusitanos. Protege-os da tentação de Baco, deus do vinho. Reconhece na língua portuguesa a latina. Canto I, estrofe 33:
Sustentava contra ele Vênus bela,
Afeiçoada à gente lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga tão amada sua romana
Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra tingitana
E na língua, na qual se imagina,
Com pouca corrupção crê que é latina (CAMÕES, s/d, p.17)
O poema é também uma homenagem à língua portuguesa, elegantemente reverenciada nessa passagem. É privilégio nosso, a leitura de Os Lusíadas no original.
Mauritânia Tingitana foi uma província romana localizada no noroeste da África, no território onde está o Marrocos e as cidades espanholas de Ceuta e Melilla. Nas referências à vida do poeta diz-se que teria participado de uma expedição ao Norte da África, provavelmente em Ceuta, onde, num combate com mouros, viria a perder o olho direito (BUENO, 1993).
3. Os Lusíadas X Mar Português
Mar Português
Fernando Pessoa, 1934
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu. Os Lusíadas – Canto I
Luís de Camões, 1572
1.
As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia lusitana
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
E entre gente remota edificaram
Novo Reino que tanto sublimaram
2.
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando
Cantando espalharei por toda parte
Se a tanto me ajudar o engenho e arte
3.
Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta
4.
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mim um novo engenho ardente
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado
Um estilo grandíloquo e corrente
Por que de vossas águas, Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene
5.
Dai-me uma fúria grande e sonorosa
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, a Marte tanto ajuda:
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso
Quadro 1 – Mar Português, Fernando Pessoa; Os Lusíadas, Luís de Camões
Logo na primeira estrofe de Os Lusíadas o poeta mostra a dimensão da aventura empreendida pelos portugueses no caminho do desconhecido. Eles foram longe, além da Taprobana, ilha do Ceilão, atual Siri Lanka. Com muito sofrimento, para a consolidação do reino. (Quadro 1). Na segunda estrofe Camões sutilmente refere-se ao genocídio dos povos conquistados. Aos sobreviventes como ele, resta relatar os fatos com engenho e arte. Na estrofe três mostra que as conquistas do grego Alexandre, o Grande, e do imperador romano Trajano, foram insignificantes em relação à grandeza das conquistas dos Portugueses, a quem até os deuses se submetem.
O poema Mar Português, de Fernando Pessoa, é parte da obra Mensagem, publicada em 1934, apenas um ano antes da morte do autor. Debruça-se sobre a época das grandes navegações. Tal como Camões, esse poeta dá ênfase ao sofrimento dos Portugueses na conquista dos mares.
Questiona se valeu a pena. E retruca que tudo vale a pena se a alma não é pequena. Frase que virou provérbio no Brasil.
O poeta provavelmente se surpreenderia ao constatar que suas palavras se transformaram em dogma de autoajuda. Foram banalizadas como justificativa para qualquer atitude, inclusive para não se respeitarem limites. Tudo vale a pena. Por sua vez, pode-se interpretar também como uma crítica do poeta às atrocidades cometidas pela política expansionista.
O poema de Pessoa foi escrito em 1934, no período entre guerras. Portugal estava longe de ser uma democracia. Lembra-me a famosa frase de Maquiavel “os fins justificam os meios”. Seria uma forma sutil de expressar o preço da gloria de Portugal? Enquanto Camões cita a Taprobana, Fernando Pessoa, o Bojador, cabo extremo oeste na costa da África. Para os portugueses, começava ali o mergulho no desconhecido. Para os povos colonizados, o sofrimento a que foram submetidos.
4. Sebastianismo na poesia de Camões e de Fernando Pessoa
Sebastião I (1554-1578), rei de Portugal, cognominado O Desejado por ser o herdeiro esperado da Dinastia de Avis, mais tarde nomeado O Encoberto ou O Adormecido, herdou o trono com apenas três anos de idade. Aos catorze anos assumiu efetivamente o governo manifestando grande fervor religioso e militar. Solicitado a cessar as ameaças ao domínio português e motivado a reviver as glórias do passado, decidiu montar um esforço militar em Marrocos planejando uma cruzada. A batalha de Alcácer-Quibir em 1578 levou ao desaparecimento de D. Sebastião em combate. Após sua morte, inicia-se uma crise dinástica que levou à perda da independência para a dinastia de Felipe II da Espanha e ao nascimento do mito Sebastianismo . A palavra sebastianismo passou a expressar uma inconformidade com a situação política vigente e uma expectativa de salvação ainda que miraculosa, através da ressurreição de um morto ilustre. O sebastianismo continua vivo quando também se espera um salvador da pátria nos embates políticos.
A épica camoniana, escrita em 1572, situa-se no hiato da História, entre o passado celebrado e o futuro desejado. Na análise de Gil & Macedo (1998), simultaneamente define um tempo esvaziado, que passa lento. Preenche-se lhe com o novo atrevimento que é o próprio poema, investido com uma qualidade equivalente a desse outro atrevimento, como lhe chamam Baco e Adamastor, que foi a aventura histórica nele celebrado. O presente deveria ver e assumir o passado, e também invocar um futuro glorioso.
Camões faz a dedicatória ao rei no canto I, estrofes 6 a 18. Manifesta sua esperança no novo rei. (Ver estrofes 7 e 8 no Quadro 2). Na estrofe 7, compara o rei com um ramo tenro e novo de uma árvore de Cristo mais amada. A árvore poderia ser a dinastia de Avis. Na estrofe 8 exalta a extensão do império português, contudo não plenamente soberano. Implicitamente admite uma guerra justa. Uma ambiguidade. Uma guerra como veículo para a paz universal. Na estrofe 9, roga que o rei tenha humildade.
O poeta levou dezessete anos de peregrinação pelo Oriente. Participou de uma viagem ao Malabar, costa ocidental da Índia. Vagueou pela Índia e China, sempre na pobreza. Dir-se-ia hoje que foi um mochileiro no Oriente. Naufragou lendariamente na foz do rio Mekong, sudeste asiático, salvando a nado os originais de sua epopeia, como narra na estrofe 128 do Canto X:
Este receberá, plácido e brando,
No seu regaço os Cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa (X,128) (CAMÕES, s/d, p. 281-282).
No mesmo naufrágio morre sua amante chinesa, origem do ciclo imortal de sonetos para Dinamene, nome da ninfa que a representa. (BUENO, 1993).
Os Lusíadas
Luís de Camões, 1572
I, 6
E vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade
Vós, ó novo temor da maura lança
Maravilha fatal da nossa idade
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande
Para do mundo a Deus dar parte grande
I, 7
Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que ele para si na Cruz tomou
I, 8
Vós poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo nascendo, vê primeiro
Vê-o também no meio do Hemisfério
E quando desce o deixa derradeiro
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro
Do Turco oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo Rio
I, 9
Inclinai por um pouco a mejestade,
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amos dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.
Mensagem
Fernando Pessoa, 1934
Brasão/III As Quinas/ Quinta / D. Sebastião, Rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Mar Português/XI A Última Nau
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol azíago
Erma, e entre choros de ânsia e de presago
Mistério.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
Quadro 2 – Sebastianismo. Camões e Fernando Pessoa
No Canto VII, o poeta diz que Portugal estava isolado na defesa da Europa. Ressalta a importância da voz e registro do poeta em meio à tragédia, em vários trechos do poema. Atraiu-nos a atenção, os dois últimos versos da estrofe 79, Canto VII, quando de um lado está a força da espada, e do outro a força palavra escrita, representada pela pena:
Qual Cánace que à morte se condena
Numa mão sempre a espada, e noutra a pena (VII, 79) (CAMÕES, s/d p. 198)
Camões desembarcou em Lisboa 1570 com seus escritos. Procurou em vão proteção da família de Vasco da Gama, herói da sua epopeia. Dois anos depois, D. Sebastião concedeu-lhe uma renda, recompensando seus serviços no Oriente e o poema, Os Lusíadas, que então publicara (CAMÕES, s/d, p.5).
Sem conhecimento do que viria ser o posterior desastre militar de Alcácer Quibir, Camões acreditara no regresso à política tradicional portuguesa de controle do norte da África como uma opção moral e materialmente mais adequada do que a continuação de uma política imperial de comércio armado no Oriente, ou a implementação, como começava a acontecer, de uma política de ocupação escravocrata no Brasil (GIL & MACEDO, 1993, p. 131-132).
A esperança que Camões depositava na missão de conquista do norte da África, é comprovada no fechamento do poema, canto X, estrofe 156, quando ele fala a D. Sebastião:
X, 156
Ou fazendo que, mais que a Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandre em vós se veja
Sem à dita de Aquiles ter inveja (CAMÕES, s/d, p. 288-289)
No nosso entendimento o verso “A vista vossa tema o monte Atlante”, teria sido uma alerta. Melhor não se aventurar mais pelo Atlântico. A alerta não previra a tragédia de Alcácer Quibir de 1978, em terra firme marroquina. Camões sobreviveu apenas dois anos ao desaparecimento do rei ao qual entusiasticamente incentivara para a ação bélica contra o inimigo infiel, impressionado que estava com a desagregação europeia diante da ameaça do imperialismo otomano. Faleceu em 10 de junho de 1580, data que é hoje dia nacional de Portugal. Uma semana depois de sua morte, Portugal foi anexado por 60 anos à Espanha, sob o domínio de Felipe II. A partir de então sua obra passou a ser conhecida mundialmente (GIL & MACEDO, 1993), porem Portugal nunca mais seria a potência que fora entre o fim do século XV e primeira metade do século XVI.
A tragédia de Dom Sebastião, que também foi sacramentada em feriado nacional, tornou-se um símbolo em Portugal. Passou a ser cantada em prosa e verso, a exemplo do trecho de Mensagem, de Fernando Pessoa, selecionado no Quadro 2. Dom Sebastião é evocado como louco, por partir ao encontro de um sonho quixotesco, inatingível. Acaba sumindo no areal. Por outro lado, ambiguamente, sem a loucura, o homem não é mais que uma besta sadia. Ao questionar se cadáver adiado procriava, o poeta aparentemente critica o culto insano ao retorno de Dom Sebastião. Foi-se a última nau. Um marco do fim do império.
Pessoa se diz um sebastianista racional (BERARDINELLI, 2014) aparentemente uma ambiguidade, pois quem é sebastianista é místico, o oposto de racional. Ou, na nossa percepção, um paradoxo, pois ninguém é só místico ou só racional o tempo todo.
A terceira parte de Mensagem evoca a tragédia de Dom Sebastião, utilizando os epítetos de O Encoberto, O Desejado. Compara sua missão com a lendária busca pelo poder do Santo Graal, e sua arma, o gládio, com a espada do Rei Arthur, chamada Excalibur, nesse caso Excalibur do Fim:
Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Graal
(MENSAGEM, Terceira Parte: O Encoberto/1. Os Símbolos TERCEIRO/DESEJADO, estr. 3)
Portanto Dom Sebastião é um herói do fim da glória de Portugal.
5. Inês e Júlia
Em 2007 visitamos o Mosteiro de Alcobaça, onde está sepultada Inês de Castro (Galícia, 1320-Coimbra, 1355) e D. Pedro I de Portugal. Assim, tomei conhecimento da sua trágica história. Inês foi executada num complô sob a ordem do rei Afonso IV. Resumidamente, D. Pedro, herdeiro do trono, ao ficar viúvo passa a viver com Inês, de quem já era amante. Tiveram três filhos considerados bastardos. O receio de o trono português passar à Casa de Castela, devido à origem espanhola de Inês, é suscitado entre os integrantes da corte, próximos ao então rei, Afonso IV pai de D. Pedro. A hipótese leva o rei a ordenar a execução de Inês .
Mais tarde, ao ascender o trono, D. Pedro I faz com que Inês seja coroada rainha depois de morta.
Dizem que a tétrica cerimônia da coroação e do beija mão à Rainha D. Inês, já morta, imposta por D. Pedro à corte, tornar-se-ia uma das imagens mais vívidas no imaginário popular.
A suntuosidade e dimensão dos túmulos em uma igreja gótica impressionam. Fiquei pensando, o que adiantou para Inês ser coroada depois de morta, a não ser tornar-se imortal na história de Portugal. Sua tumba está em frente à de Dom Pedro. Embora as duas sepulturas só tenham sido colocadas frente a frente no século XVIII, apareceu uma lenda, de que a nova posição fora escolhida para que D. Pedro e D. Inês pudessem se olhar nos olhos quando despertassem no dia do juízo final. Saí da igreja imaginando o encontro sem acreditar que realmente pudera ter ocorrido.
Lápide de Julia Fetal (1827-1847)
Adelia de Castro Fonseca
Estavas, bella Julia, descansada,
Na flor da juventude e formosura,
Desfructando as caricias e ternura
Tua mãe que por ti era idolatrada.
A dita de por todos ser amada
Gozavas, sem prever tu'alma pura,
Que, por mesquinho fado, á sepultura
Brevemente serias transportada!
Mas ah! de um insensato a dextra forte
Dispara sobre ti, Julia querida,
O fatal tiro, que te deu a morte!...
Dos olhos foi-te a luz amortecida,
E do rosto apagou-te iniqua sorte
A branca e viva cór co'a doce vida. Os Lusíadas
Luís de Camões
Canto III, 136
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, lendo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas
Do teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam,
E quanto enfim cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria
Quadro 3 – Julia e Inês
A tragédia de amor e morte deve ter impressionado Camões. Com lirismo, conta a história com detalhes e metáforas mitológicas no Canto III, da estrofe 118 a 135, portanto em 18 estrofes. Ao ler o texto, alguns trechos que me pareceram familiares. Lembrei-me de outro túmulo em igreja, cuja foto aparece na capa do corrente trabalho. Igreja da Graça, Salvador, frequentada por mim desde a infância. Recentemente, mas antes mesmo de ter lido Camões, estivera ali numa missa quando relera o soneto para Julia Fetal. (Quadro 3).
A viagem proposta no início do corrente trabalho me levou à história de Julia Fetal (1827-1847), filha de um próspero comerciante português e de uma senhora francesa Júlie Fetal. (GALENO, 1971)
Metódica, ambiciosa e enérgica, Júlie ficou viúva com cinco filhos. Moravam no sobrado na Rua do Rosário, onde mais tarde residiu a família de Castro Alves. Diz-se que Julia foi rigidamente educada. Tocava divinamente o piano em saraus, quando era muito admirada e cortejada. (GALENO, 1971).
João Estanislau da Silva Lisboa, professor do Liceu é convidado a dar aula de Inglês a Julia sob o olhar severo de mãe, Júlie. O peito do professor começa a bater forte pela aluna até se transformar numa paixão obsessiva. Ficaram noivos em 1846, até que no ano seguinte, surgiu um esbelto estudante em férias, quintanista de Direito do Recife, com modos distintos, aspecto romântico. Atraiu a atenção de Julia. (GALENO, 1971).
Enciumado, Lisboa manda confeccionar no ourives da cidade baixa, uma bala feita com o ouro fundido da aliança de noivado. O escritor Pedro Calmon comenta que foi um brinco de cortesia triste, último presente que lhe alojou no coração. O assassinato ficou conhecido como o crime da bala de ouro (CALMON, 1947, apud MARQUES, 2008)
Lisboa cumpriu 14 anos de prisão e voltou a ser professor. Saiu do cárcere aos 42 para dirigir o Colégio São João, inclusive com direito a uma poesia de autoria de Moniz Barreto:
Honra ao padrinho, ao Lisboa,
Cujo peito varonil
Nas asas da fama vê
Dentro e fora do Brasil!
Honra ao baiano brioso,
Ao ilustre criminoso,
Ao grande mártir do amor
Da pátria o belo ornamento
No estoico sofrimento
No saber, no pundonor
Na sociedade machista do século XIX, provavelmente o crime passional transformou Lisboa em herói, em mártir do amor, ironicamente quase uma vítima de Julia.
Se fossem recontados todos os detalhes da história, teria que escrever um livro. Voltemos a Camões, cuja presença é evidente no soneto de autoria de Adelia de Castro Fonseca para Julia. No Quadro 3 comparam-se os dois poemas. O primeiro verso do soneto, também o primeiro a ficar gravado na memória, é uma imitação do verso primeiro do Canto III, 136, dos Lusíadas. Não há dúvida de que a autora, utilizando a fonte camoniana, escreveu um belo soneto, em decassílabos, no modelo clássico de Petrarca. Dois quartetos e dois tercetos.
Camões insinua que o amor da juventude é fugaz e que a sorte não deixa durar muito. Os sonhos de Inês lhe mentiam.
Os últimos versos, estrofe 134, Canto III dos Lusíadas diz:
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva cor, com a doce vida.
Os últimos versos do soneto para Julia (Quadro 3) dizem:
E do rosto apagou-te iniqua sorte
A branca e viva cór co'a doce vida.
Segundo a lenda, as lágrimas derramadas no rio Mondego pela morte de Inês teriam criado a Fonte das Lágrimas da Quinta das Lágrimas, e algumas algas avermelhadas que ali crescem seriam o seu sangue derramado. A lenda é evocada no Canto III, estrofe 135:
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
“Dos Amores de Inês”, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega flores,
Que lágrimas são a água, e o nome Amores!
Adelia Fonseca, autora do soneto na lápide de Julia, deve ter bebido água na Fonte dos Amores de Inês ou na Fonte das Lágrimas. Evidentemente sem a mesma dimensão de Inês, Julia também, pela trágica morte, ficou imortalizada na história da Bahia.
6. Ponto de chegada
Por que será que uma obra clássica como os Lusíadas parece atual? Ítalo Calvino, em sua monumental obra Porque Ler os Clássicos, enumera catorze propostas. Na 13ª proposta, observa: “É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo” (CALVINO, 2007, p.15). Infelizmente dentre alguns barulhos de fundo da atualidade estão o feminicídio e o sebastianismo. Os crimes passionais continuam acontecendo e, inconscientemente, nos embates políticos procura-se um salvador da pátria.
Na realidade, o fechamento do texto não é o final da viagem pel’Os Lusíados. A leitura de um clássico não se esgota. É preciso fazer uma pausa, terminar o artigo. Tal como Camões errante pelo Oriente, senti-me como uma mochileira atravessando os Lusíadas. Percebi o rastro de Camões na história, em poesias, em músicas, naturalmente em visitas a Portugal, e até em memórias de infância. Gostaria de escrever muito mais, utilizando O Fado Tropical, de Chico Buarque; Quem Quiser Falar com Deus, de Gilberto Gil; ou o satírico poema de Gregório de Matos, Sete Anos de Nobreza na Bahia. Entretanto, o prazo da jornada está se esgotando.
Sinto-me simples iniciante numa viagem camoniana que apenas começou.
De primeira viagem, marinheira,
Agradeço à guia Profa. Claudia Cerqueira,
E a você caro leitor,
Se, com tanto coisa por concluir
Conseguiu chegar comigo até aqui.
Vera Spínola, 31/07/2014
REFERÊNCIAS
BERARDINELLI, Cleonice. Os tempos da pátria. Pessoa e a história de Portugal entre o heroico e o místico. Folha de São Paulo. Ilustrissima. 13/07/2014.
(http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/07/1484792-os-tempos-da-patria-pessoa-e-a-historia-de-portugal-entre-o-heroico-e-o-mistico.shtml, acesso 27 de julho de 2014).
BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003
BUENO, Alexei. Os Lusíadas. Introdução. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1993, p.1-13
CALMON, Pedro. A Bala de Ouro, 1947.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Escala Ltda, s/d.
CALVINO, Por que Ler os Clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GALENO, Cândida. Julia Fetal, 1971.
http://www.ceara.pro.br/acl/revistas/revistas/1971/ACL_1971_23_Julia_Fetal_Candida_Galeno.pdf
GIL, Fernando & MACEDO, Helder. Viagens do Olhar. 3.A Poética verdade d’Os Lusíadas 1ª ed. Porto: Campo das Letras, 1998, p. 121-140.
MARQUES, Alvaro B. O Crime que abalou a sociedade baiana no ano de 1847. Bahiatextos.
(http://bahiatextos.blogspot.com.br/2010/05/o-crime-que-abalou-sociedade-baiana-no.html, acesso em 30/07/14)
MERQUIOR, José Guilherme. Saudades do Carnaval: Introdução à Crise da Cultura. 1ª edição. Capítulo 1: Formação da Pandeia Humanista, 1972, p.13-34
PESSOA, Fernando. Mensagem, 1934. (http://www.cfh.ufsc.br/~magno/mensagem.htm, acesso em 20/07/14)
TORRES, Antonio. Meu Querido Canibal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2013
Outros sites consultados
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_de_Portugal acesso em 29/07/14
http://pt.wikipedia.org/wiki/In%C3%AAs_de_Castro, aceeso em 28/07/14
Anexo I
Sete Anos de Nobreza na Bahia
Gregório de Matos
Serviu a uma pastora indiana bela
Porém serviu à Índia, e não a ela,
Que à Índia só por prêmio pretendia.
Mil dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la:
Mas Frei Tomás, usando de cautela,
Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia.
Vendo o Brasil que por tão sujos modos
Se lhe usurpara a sua Dona Elvira
Quase a golpes de um maço e de uma golva:
Logo se arrependeram de amar todos
E qualquer mais amara, se não fora
Para tão limpo amor tão suja noiva. Sete Anos de Pastor Jacó Servia
Luís de Camões
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: - Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta vida!